Utopias da Vida Comum | 17º Bienal de Arquitetura de Veneza

O texto a seguir consiste em fragmentos do catálogo da representação brasileira na 17ª Mostra Internacional de Arquitetura – La Biennale di Venezia: Utopias da vida comum (2021).

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01 – UTOPIAS COMO LUGAR DA IMAGINAÇÃO

Carlos Alberto Maciel

 

Pela primeira vez, no histórico das representações brasileiras nas Bienais Internacionais de Arquitetura de Veneza, um interregno de dois anos separou o convite aos curadores e a abertura da mostra. Na motivação desse intervalo se encontra uma tragédia: a pandemia que vem assolando o mundo, e o Brasil não foi exceção. Nesse mesmo intervalo transcorreu a concepção, paralisação, revisão, consolidação e ampliação do conteúdo curatorial que reunimos nesse livro.

O tema da 17ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, definido pelo curador geral Hashim Sarkis, apresenta a pergunta “Como viveremos juntos?”. Utopias da vida comum dialoga com essa questão de diversos modos. Nossa primeira iniciativa consistiu em olhar para o Pavilhão Brasileiro em Veneza e repensar seu espaço. Ao longo dos anos ele sofreu inúmeras intervenções que apagaram algumas de suas características mais marcantes. A principal delas era a abertura da primeira sala para os terraços laterais com generosas vidraças, fechadas por dois depósitos. Propusemos uma restauração completa do pavilhão e sua reabertura. Abrir portas seria uma resposta concreta àquela pergunta colocada por Sarkis. Infelizmente essa iniciativa não foi possível devido a toda a mudança de contexto que todos conhecemos bem. Mas a ideia persiste, foi sinalizada na exposição e está registrada aqui.

Uma segunda maneira de buscar responder àquela questão principal é o próprio tema que propusemos investigar: as utopias da vida comum. A pergunta sobre como viveremos juntos carrega em si a ideia de utopia no sentido mais fundamental, que pressupõe a construção de outros lugares e outras ordens, futuras, diferentes da existente, em que igualdade, justiça social e fraternidade prevaleçam em organizações sociais verdadeiramente comprometidas com a coletividade. A utopia é algo da ordem da imaginação, uma força motriz que desloca o presente, alterando a rota do desastre – como dizia Paulo Mendes da Rocha e nos lembra sempre Alexandre Delijaicov – em outras direções e propiciando a transformação. Lançar o olhar das utopias sobre a vida cotidiana e as pessoas, e não sobre as produções eruditas e hegemônicas da arquitetura e das cidades, nos permite reimaginar o mundo que chega até nós, com todas as suas contradições, para reinventá-lo e sonhar outros mundos possíveis.

Por último, Utopias da vida comum responde ao tema – e ao chamado do curador geral – ao convocar outras vozes e novas visões sobre arquitetura para aumentar o nosso mundo: da arte, do cinema, da fotografia, e do jornalismo; da história, da economia e das ciências sociais; da pedagogia, da agroecologia e da cultura dos povos Guarani; dos pensamentos decolonizador e feminista; das práticas colaborativas e dos movimentos sociais. Esses múltiplos olhares constituem um caleidoscópio que nos faz entrever a extensão e a relevância daquela ideia – a utopia, ou as utopias, tão diversas e plurais – que em vários momentos orientou a ação de brasileiras e brasileiros para redefinir o rumo de suas vidas e, por conseguinte, deslocar o fio da história.

(…)

 

02 – UTOPIAS DA VIDA COMUM

Ninguém sabe como o mundo vai ser daqui a cinquenta anos. Só sabemos de uma coisa: será totalmente diferente do que é hoje. Alguém podia imaginar quando acabou a guerra? Que o mundo ia mudar tanto? Há uma reinvenção do mundo que o desenvolvimento está fazendo. Portanto, a coisa mais importante para o brasileiro é inventar o Brasil que nós queremos. Antes do Brasil existir, como era o mundo? O Brasil nasce sob o signo da Utopia, a Terra sem Males.” 

-Darcy Ribeiro, Antropólogo brasileiro (Fragmento do documentário O Povo Brasileiro, de Isa Grinspum Ferras)

 

Há mais de 5 mil anos o povo Guarani vagava pelo território à procura do solo virgem de uma “Terra sem Males”, um lugar que seria um espelho da terra, mas sem fome, guerra e doenças. Nos processos de colonização, essa migração constituiu um movimento de resistência dos povos originários. A utopia guarani antecipa um modo moderno de imaginar o futuro que associa os avanços sociais à inauguração da ocupação de novos territórios.

Amplificar o sentido público do espaço, acolher a diferença, reduzir as desigualdades e preparar o território para oferecer à sociedade plataformas abertas para a construção de uma convivência plena em toda a sua complexidade, sem sublimar suas contradições, são valores que orientaram experiências da arquitetura moderna brasileira e comparecem em iniciativas contemporâneas, permitindo imaginar a construção de “outros lugares” – utopias – para a vida comum.

Futuros do Passado retrata um momento em que ainda vigorava a crença de que o Brasil era o “país do futuro” e tudo estava por ser construído. Sem nostalgia, os ensaios fotográficos de Luiza Baldan e Gustavo Minas revelam a força e os desvios da apropriação cotidiana recente em duas obras que a seu tempo foram exemplares dos ideais transformadores da modernidade: o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, o Pedregulho (1947), no Rio de Janeiro, e a Plataforma Rodoviária de Brasília (1957). Uma terceira obra que integra aquele momento é este pavilhão brasileiro em Veneza. Reverter sua degradação em um delicado restauro e reabrir as suas vidraças para o Giardini foram pontos de partida na discussão sobre como viveremos juntos, o que infelizmente não se realizou pelo atual contexto, mas que permanece na condição de uma outra utopia, simbolizadas nas paredes pretas desta sala.

Contemporaneamente, construir novos edifícios já não é a principal urgência. Repensar as infraestruturas, conferindo-lhes novas e múltiplas funcionalidades com desenhos mais propícios ao usufruto coletivo e requalificar extensos conjuntos edificados das áreas centrais em processo de obsolescência são desafios emergentes. Seria possível redefinir toda uma metrópole a partir da inversão da mobilidade, incorporando seus rios como elementos indutores da mobilidade e da vida urbana? Seria desejável renovar edifícios abandonados, reocupando-os para a habitação dos mais vulneráveis? Refletindo sobre a possibilidade de reversão dos principais problemas das metrópoles brasileiras, “Futuros do Presente” apresenta dois filmes especialmente comissionados para a mostra que refletem poeticamente sobre essas questões, imaginando a vida ressignificada com a transformação das infraestruturas para habitar e circular nas metrópoles. As duas iniciativas operam sobre o existente, não em um “outro lugar”, invertendo a lógica de exclusão imposta pela dicotomia entre centro – valorizado pela farta presença de planejamento, infraestrutura e investimento – e periferia – caótica, negligenciada e desprovida da presença do poder público. Ao sugerirem uma reconciliação com a natureza em sentido amplo, iluminam novas possibilidades para uma convivência mais rica, diversa, qualificada e transformadora, menos desigual, mais amigável e ambientalmente consciente.

Sem perder de vista que toda utopia carrega em si a ideologia de quem a propõe, como afirmou Paul Ricoeur, pensar em utopias é hoje, no mundo contemporâneo, uma urgência incontornável. As utopias da vida comum aqui presentes sinalizam a possibilidade de conciliação entre tradição e mudança como uma potente ferramenta para lidarmos contemporaneamente com as dívidas socioambientais da colonização e de uma urbanização cuja superação é urgente.

 

“O reexame da história recente do país se impõe. O balanço da civilização brasileira “popular” é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do folklore, sempre paternalisticamente amparado pela cultura elevada, é o balanço “visto do outro lado”, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é o habitante das vilas, é o negro e o índio. Uma massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir.”

-Lina Bo Bardi. Tempos de grossura: o design no impasse.

 

Assim nos ensinava 41 anos atrás Lina Bo Bardi, laureada nesta Bienal com o Leão de Ouro pelo conjunto da Obra. Esta exposição reconhece e homenageia a importância de tantas pessoas não nascidas em solo brasileiro que, como Lina, o adotaram e assimilaram o país como seu lugar de vida e que acreditam e trabalham pela igualdade em um país tão desigual. É um convite à reflexão sobre as potências da imaginação e da poesia para outros mundos possíveis, e sobre a possibilidade de reconhecer a apropriação popular da alta cultura, re-significando os escombros da modernidade.

 

03- SOBRE A EXPOGRAFIA

Arquitetura como construir portas

 

Conceber uma exposição de arquitetura implica necessariamente em refletir sobre o espaço que a abrigará. O Pavilhão Brasileiro no Giardini, em Veneza, é um edifício moderno de forte valor simbólico dada a sua concepção como espaço de representação. Reconhecer sua espacialidade e a integração com o local em que se implanta foi um ponto de partida para a concepção curatorial e expográfica e para a definição de um legado da representação brasileira na 17ª Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza.

A localização privilegiada do pavilhão no Giardini, protagonista por se implantar no eixo da ponte que conecta as duas partes do parque, reforça a importância de sua articulação com o entorno imediato. Concebido originalmente como dois espaços de distintas escalas e proporções, cortados por um eixo articulador que repercute sua implantação e define seus acessos, apresentava uma diferenciação clara quanto à abertura e intimidade. Enquanto o segundo bloco, de maiores dimensões e maior altura, configurava – e ainda configura – um espaço interior com grande intimidade, claramente separado do exterior, o primeiro volume apresentava, além do acesso marcado no eixo principal, uma dupla abertura no sentido transversal, com vidraças que promoviam a total integração visual do espaço interior com os terraços laterais, demarcados por bancos no seu perímetro. Essa integração foi paulatinamente desconfigurada com a inserção de painéis em metal perfurado para proteção solar e posteriormente com a implantação de duas divisórias opacas, conformando dois pequenos depósitos, um em cada extremidade do espaço. Essa intervenção, que viabiliza a criação de espaços de apoio, por outro lado reduz a variedade espacial e ambiental do pavilhão, uniformizando a experiência das salas. Por sua relevância, por se tratar de um edifício que integra o conjunto dos principais exemplos da arquitetura moderna brasileira, e por ecoar positivamente no contexto de uma exposição pública, a primeira ação ratorial proposta foi a reabertura da primeira sala nas suas duas extremidades, restituindo-lhe sua espacialidade original.

Para tanto, duas ações foram planejadas: primeiro, a eliminação dos depósitos, que, por serem imprescindíveis ao bom funcionamento das exposições, seriam transferidos para a segunda sala, em posição equivalente à que ocupavam na primeira sala, limitados à altura da parede expositiva existente de modo a não alterar a qualidade da luz superior perimetral que varre todo o espaço; segundo, o restauro das esquadrias originais, repondo as vidraças. Completava a iniciativa a elaboração de um anteprojeto para restauro de todo o pavilhão, recuperando suas impermeabilizações, renovando os revestimentos e substituindo os acrílicos dos lanternins da segunda sala por vidro translúcido, recuperando a materialidade original.

A ideia de reabrir portas fechadas repercute positivamente o tema geral da Bienal – Como viveremos juntos? –, ao ampliar as possibilidades de convívio, tornando pública parte da exposição para quem circula pelo Giardini. Trata-se em última instância de uma potencialização do caráter público e aberto que se quer para o Pavilhão do Brasil, materializando, com uma ação direta no espaço físico, o conteúdo curatorial da exposição. Infelizmente essa ação, dada a mudança do contexto em que se realizou a mostra, não se fez possível por diversas razões. Para sinalizar a ideia, que esteve na base conceitual da proposta curatorial, representamos nas paredes que não puderam ser suprimidas, agora pretas, o desenho daquelas desejadas aberturas, apresentadas junto às fotografias originais do edifício ainda não mutilado.

Enquanto a primeira sala confronta as duas ausências através da representação das vidraças, na segunda e maior sala do pavilhão, a introspecção original é enfatizada com a criação das duas salas escuras que apresentam os dois filmes comissionados especialmente para a exposição. Uma contradição de partida que a proposta expográfica teve de enfrentar foi o confronto entre a espacialidade original – uma sala longilínea com iluminação difusa superior – e a espacialidade fragmentada das três salas, com o bloqueio da luz natural em duas delas, para viabilizar a melhor condição ambiental para a imersão cinematográfica. No trecho central, que conforma uma sala intermediária de natureza híbrida – acesso, transição e amortecimento entre as duas experiências imersivas, informação sobre os conteúdos e saída – manteve-se a fresta de luz natural das aberturas superiores, a fim de modular a experiência da imersão das salas escuras, em um contraste que prepara também para a saída a céu aberto que se faz pela porta posterior no eixo principal do pavilhão. A presença da grande viga-caixa em concreto flutuando sobre a sala demarca enfaticamente a sua bipartição. Aqui comparece o principal elemento expográfico desse espaço: duas paredes espelhadas quase paralelas repetem infinitamente a imagem da viga – e dos visitantes que atravessam de um lado ao outro, entre salas, e da entrada à saída do pavilhão. Ao promoverem o espelhamento quase infinito – limitado pela pequena angulação –, recriam virtualmente o espaço dilatado longitudinalmente que a sala apresenta na sua conformação original, entretanto sugerindo uma deformação tanto de sua escala como de sua geometria, promovidas pela aparente circularidade produzida pela angulação entre espelhos. Essa dilatação que sugere uma extensão ao infinito reverbera, virtualmente, a mesma extensão – física e visual – que seria recuperada com a abertura das vidraças da primeira e menor sala.

Em uma relação menos literal, a presença dos espelhos recoloca o espectador na cena entre filmes, incluindo-o no espaço e no tempo da exposição; remete à ideia estruturante do filme Metrópole Fluvial, de Amir Admoni, que imagina a coexistência dialética entre dois tempos dos rios de São Paulo através do recurso ao espelhamento da imagem, em uma ambígua navegação entre tempos e lugares; Por último, repercute no espaço da exposição a discussão sobre a heterotopia foucaultiana.

Michel Foucault, na conferência ministrada em 1967 intitulada De Espaços Outros, distingue as utopias – alocações sem lugar real – das heterotopias – “ (…) lugares reais, lugares efetivos, lugares que são desenhados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contra-alocações, espécies de utopias efetivamente realizadas, nas quais as alocações reais, todas as outras alocações reais que podem ser encontradas no interior da cultura, são simultaneamente representadas, contestadas e invertidas; espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis”49. Base da abordagem inicial de Admoni para a conceituação da Metrópole Fluvial, é também uma lente potente para mirar o fenômeno das ocupações50. A relação entre os espelhos e a criação de imagens utópicas e heterotópicas é melhor apresentada pelas palavras do próprio Foucault:

E creio que entre as utopias e essas alocações absolutamente outras, essas heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, conjugada, que seria o espelho. O espelho, afinal de contas, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície; estou ali onde não estou; uma espécie de sombra que me confere minha própria visibilidade, que me permite olhar-me ali onde sou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente e tem, no local que eu ocupo, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que me descubro ausente do local onde estou, já que me vejo ali. A partir desse olhar, que de certa forma se dirige a mim, do fundo desse espaço virtual do outro lado do vidro, eu retorno a mim e recomeço a dirigir meus olhos a mim mesmo e a me reconstituir ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia, no sentido de que ele torna esse local, que eu ocupo no momento em que me olho no vidro, ao mesmo tempo absolutamente real, em ligação com todo o espaço que o cerca, e absolutamente irreal, já que tal local precisa, para ser percebido, passar por esse ponto virtual que está ali.

-Michel Focault. De outros espaços.

Um dado fundamental que perpassa a proposta curatorial é o tempo, que informa a escolha dos ensaios fotográficos das duas obras da arquitetura moderna brasileira e comparece como elemento estruturante dos filmes comissionados para a mostra. Quando Lucio Costa visita a Plataforma Rodoviária de Brasília e constata que “o sonho foi menor do que a realidade”, está em última instância assumindo a necessidade da ação do tempo sobre os artefatos construídos para sedimentar através da apropriação novos e imprevistos sentidos. Essa compreensão do tempo subjaz aos fundamentos principais que orientaram a expografia, que procuram revelar múltiplas camadas da existência de um artefato arquitetônico relevante desde a mais literal alternância temporal entre abertura e fechamento das vidraças até a menos literal revelação de outros espaços, virtuais, que podem acontecer no tempo do visitante, no mundo refletido e distorcido dos espelhos.